Vítor
Ribeiro Costa tinha tudo para não fazer parte deste filme: desertou,
entregou-se. A 24 de Abril de 1974, foi dormir a casa, apesar de ter ordens em
contrário. Acordou num sobressalto.
Desertou
sem dizer uma palavra à mãe. Agora, cada vez que a vai visitar, ouve: “Ó filho,
já não te vejo há 40 anos. Ficas cá?” Ela conta quase 89 anos. Não reconhece os
outros filhos. “Eu saio, vou à rua fumar um cigarro, entro, a conversa é a
mesma: ‘Ó filho, já não te vejo há 40 anos. Ficas cá?’
Vítor
Ribeiro Costa não se demorou em França. A 25 de Abril de 1974 até estava bem no
centro dos acontecimentos. Fez parte da contra-ofensiva lançada pelo regime,
embora no início nem soubesse de que lado estava. “Só quando vi a GNR no Largo
de Camões é que percebi: ‘A GNR está sempre a favor do regime, nós fazemos
parte das forças fiéis ao Marcelo Caetano.’”
Não
esteve na guerra colonial. A guerra, para ele, esgota-se na tensão do dia que
lhe pôs fim e nos estilhaços para sempre cravejados no espírito do irmão nela
forçado a entrar. Despediu-se dele no Cais de Alcântara em Dezembro de 1967.
Viu-o desaparecer no navio-almirante Vera Cruz, rumo a Angola, onde eclodira o
conflito que entretanto se estendera a Moçambique e à Guiné. Não queria seguir
no mesmo barco ou noutro requisitado à marinha mercante para transportar
tropas. “Ia morrer para quê? Aquilo não tinha a ver comigo. Aquilo era deles.”
Onde
isso tudo já vai. Está agora perto de casa, em Castanheira do Ribatejo,
freguesia de Vila Franca de Xira, para onde se mudou no primeiro ano de vida.
Gosta de andar no sossego da lezíria. Passa horas a pescar no Tejo. E, enquanto
espera que a tainha morda, tantas vezes se perde nos seus pensamentos. Chega
àquele dia, o dia da “revolução dos cravos”, parece que tudo se cobre de névoa.
Usa
a expressão “amnésia colectiva” quando se senta a conversar sobre o 25 de
Abril. É algo que lhe vem de conversas tidas com o jornalista Adelino Gomes e o
fotojornalista Alfredo Cunha, que o descobriram quando trabalhavam no livro Os
Rapazes dos Tanques (Porto Editora, 2014), sobre os militares que estiveram
frente-a-frente naquele dia, incluindo os que se recusaram a disparar, como
ele.
Não
se pode dizer que fosse politizado quando decidiu desertar, a militância
comunista veio anos depois. O que se pode dizer é que estava a “começar a
ganhar consciência política”. Trabalhava numa oficina de metalomecânica e
dava-se bem com outros jovens da sua terra — muitos descontentes “com a
situação”, alguns já mais activos, como José Timóteo, um metalúrgico que fazia
parte do Movimento da Juventude Trabalhadora, organização criada pelo PCP
aquando da campanha eleitoral de 1969, as primeiras eleições depois de António
de Oliveira Salazar sair da Presidência do Conselho.
Vestiu
a farda. Começou a recruta. A fuga não lhe saía da cabeça. Aproveitou um
fim-de-semana para a concretizar. Como jogava futebol no Alhandra Sporting
Club, então na segunda divisão, disse à mãe: “Se não aparecer estes dias, não
se preocupe que vou para estágio.” Não queria que ela desconfiasse. Já lhe
falara nisso e ela reagira mal: “Que eu saiba, que eu vou dizer à guarda!”
Escreveu-lhe uma carta. Pediu a José Timóteo que a metesse no correio dois dias
após a partida.
O
PCP preferia que os militantes lutassem contra a guerra dentro da guerra, mas
incitava outros a faltar à chamada ou a abandonar as fileiras das forças
armadas, lembra o historiador Miguel Cardina. A cerca de 200 mil faltosos há
que juntar um número indeterminado de jovens com recruta feita ou iniciada, diz
ainda. Nem todos saíram do país, mas boa parte fê-lo, com passaporte falso ou
“passaporte de coelho”, isto é, sem documentos, “a salto”, sobretudo para
França.
Os
registos das Forças Armadas mostram o quanto o número de faltosos foi crescendo
desde o início dos confrontos: 8.722 em 1961, 14.357 em 1964, 17.838 em 1968.
Não há dados referentes a 1969. A tendência prosseguiu, ainda que com um
soluço, nos anos seguintes: 18.554 em 1970, 15.644 em 1971, 18.841 em 1972.
Não
parece haver uma explicação óbvia para a quebra registada em 1971. Em 1971, a
França prometeu a Portugal proibir a entrada de menores de 21 anos. “O Governo
tentava fazer crer que deixava sair trabalhadores mas não sem fazer tropa”,
interpreta o historiador Victor Pereira. Apesar de os franceses não respeitarem
o acordo, durante pelo menos “algumas semanas” alguns rapazes podem ter
desistido de emigrar, pensando que não conseguiriam entrar.
Vítor
partiu a 13 de Fevereiro de 1970, sem bagagem, vestindo umas calças
boca-de-sino e um casaco cintado, comprado em segunda mão. Tinha completado 20
anos em Dezembro. Um amigo, Armando Morais, outro destacado militante do PCP,
emprestou-lhe 500 escudos e levou-o à estação seguinte, à de Vala do Carregado,
não fosse alguém desconfiar.
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